Conto Premiado

"45 Minutos"
- TERCEIRO LUGAR, CATEGORIA CONTO - CONCURSO DELICATTA III - Leia o texto.

Novidades

Acabo de fazer uma reforma no layout do blog. Agora os frequentadores poderão deixar recados no Mural de Recados, ou enviar mensagens privadas para meu e-mail diretamente do site. Tudo isso na barra lateral. Espero que gostem!

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Além Mar

Dorme nas montanha dum além mar
Onde com voracidade a terra engole
prantos e reclames escondidos sob o luar
(sorriso sem dentes. Brilho sem o brilhar)

Sonho denso, quase imortal
De um homem sem leis ou fronteiras
Apenas acumulado por dores alheias
(insignificante é esta cadência)

Purificado é o ar, mesmo ainda cinzento
Engloba o denso e voraz amargor
Transforma, recria, intensifica
(nunca chove sem molhar)

Olhos fechados vêem muito além
Fronteiras e cercas diluidas na escuridão
Espaço vazio e completo – Tão cheio de si
Fechados voam onde as asas não podem chegar

Também aterrizam – em terras escolhidas
Guiam na mata ou no cimento das cidades
Correm entre carros e manadas ferozes
(não há medo na certeza)

Nas montanhas do além mar
Dorme ainda o homem
Por alguns segundos deixando a alma sonhar
(livre, livre para voar)

Alexandre Cesar Martins – 11 de outubro de 2008

Penosa Aceitação

Não há de ser nada – pensei imediatamente após ler aquela carta. Triste coincidência da vida. Esbarrar numa incerteza logo na primeira curva de um caminho nada acidentado. Já não havia tempo em que não pensasse em parar a correria e me deleitar no prazeroso nada fazer por uns tempos – pedido negado. As contas foram acumulando na gaveta da escrivaninha e o telefone quando tocava causa-me arrepios torrenciais. Num suave conto de fadas seria simples – chamem a fada madrinha imediatamente, preciso de saldo positivo em minha conta bancária – Shazan!!! Desejo realizado. Estretanto, dei-me conta que a vida não é um conto, mas um romance repleto de páginas estranhas e cheias de um nazismo incompreensível. “Hitler me veio a mente agora”.

Na carta um olhar desesperado atropelando palavras em busca da chave final – “Sim ou não? Onde está?” O papel tão branco que num segundo distraído pareceu-me uma obra de arte moderna, estilo borrões em uma tela para enfeitar a parede da sala de estar com a última tendência. “Digno e requintado”. As palavras na carta tinham um som estranho e não formavam um texto o qual poderia eu doar alguns minutos de meu tempo de sobra, mais sim uma assombrosa aparência de água fervilhando um gás letal – a dúvida.

Dias atrás tentei atravessar a rua com o sinal aberto, uma passarela de pedestres estava próxima, mas algo me desvirtuava, jogava-me para a beira do precipício sem direito a pára-quedas – e se o tivesse ganhado certamente não abriria e lá se ia um homem de encontro ao chão na velocidade da agonia momentânea. O fato conta, entretanto, que a galinha logo tentou jogar-se para o outro lado da calçada e ninguém sabe ao certo o porquê disso. Senti-me parente próximo da co-có-ri-có naquele momento e pensava apenas no chegar ao meu destino. Haveria algo lá pra mim como houve pra penosa, afinal seu ato de atravessar a rua ficou marcado na história como um feito de grande importância. Garanto que até mesmo Da Vinci tentou entender, não encontrando a resposta para o dilema da ave, esqueceu o assunto e dedicou-se a ocultar símbolos em suas obras – ninguém sabe o porquê. De que importa. A galinha atravessou. No final rendeu-me um idéia maravilhosa.

Lembro de ter-me sentado da cama, boquiaberto com a conquista. O triunfo exaltado de um, outrora, perdedor nato. O espelho logo a minha frente mostrava um sorriso estranho com o qual não estava acostumado. O reflexo incoerente de uma alma penada com endereço. Li aquelas palavras um par de vezes. “Aceito na academia de artes”. Não faziam sentido. Como alguém em sã consciência poderia admitir um ser cuja obra enviada como trabalho principal mal poderia ser chamada de obra num todo, mas sim de uma piada em prol de um manifesto. Tentei entrar naquela joça tantas vezes que perdi a conta e num ato inédito de desgosto enviei-lhes uma aberração em forma de pintura. Ô vida estranha, ô povo estranho. O fato é: “Aceito na academia de artes”.

Sai de casa com o orgulho manchado. Minha alegria transformou-se em ódio. O ódio deu asas ao diabo que todos carregamos no peito. Embaixo do braço um esboço de meu trabalho vitorioso, o qual me abriu as portas do mundo acadêmico e em meus olhos um ardor enxurrado de tempestade de verão. Parei defronte para a rua movimentada e detive-me por minutos a filosofar silenciosamente comigo mesmo, tal qual no momento galináceo vivido noutro dia qualquer.

Pintar quadros nas ruas não enche barriga isso é mais que comprovado pelo meu estômago diminuto por obrigação. Caramba, quanta vezes pensei em logo entrar praquela academia e mudar essa vida para algo não tão ruim – e nada. Tentei vingar-me dos incólumes e nada consegui senão fazer passá-los uma imagem louca e digna de um diploma. Daquele dia, após vender uma verdadeira obra de arte por dez reais para um homem sem identidade, ao chegar em casa preparei o cavalete, a tela,os pincéis e as tintas, pus-me a trabalhar com voracidade. A vingança tem um sabor malicioso e picante.

A galinha era negra com uma volumosa quantidade de penas ressaltadas em um pranto de dar dó. Defronte para esta uma rua lotada de carros parados diante de uma faixa de pedestres. Do outro lado um prédio antigo reinava soberanamente no jardim vasto e de final a perder-se de vista. O guarda apontava firmemente a palma da mão para a ave - Uma barba espessa cobria o rosto de Da Vinci com um apito roxo na boca.

Olhei para a avenida, para o viaduto e depois para o prédio da Academia de Artes. Pretendia logo jogar-me embaixo de algum carro, mostrar sangue para os paspalhos, mas de súbito parei.

“A galinha chega inteira do outro lado”. Tomei o rumo do viaduto, o mesmo rumo que a mediocridade toma quando o seguir de um orgulho já não mais basta. “Quando a barriga ronca e a campainha toca – lá vem cobrança”.

No final, a galinha recolhe as penas e pena para não morrer na primeira encruzilhada. Afinal quem não gosta de canja?

Alexandre C. Martins - 31 de agosto de 2008

Sexo Casual

Ana deita-se nua na cama. Os olhos verdes e repuxados brilham em sintonia com a lâmpada do abajur em cima do criado mudo ao seu lado, enquanto que os cabelos negros cobrem-lhe atrevidamente os pequenos seios. As mãos da mulher passeiam por sobre seu corpo, acariciam maliciosas os pelos pubianos, tão negros quanto a própria noite que se desenrola por trás destas paredes. A boca parece acompanhar em passo musical os entrelaces de desejo emanado de cada poro do corpo feminino em delírio.

Em pé, igualmente nu, defronte para Ana, Gabriel, ainda tonto de prazer demonstra sua excitação, alisando sua fonte de luxúria, evidenciando sua fome e ardor. O corpo másculo estremece junto ao de Ana enquanto encaminha-se para o leito em brasa. Deita-se por sobre a mulher, a qual em meio a um devaneio erótico desmorona, entregando-se por completo. Lábios se tocam ardentes, em meio a beijos fogosos, mãos se desentendem num ritmo frenético de carícias, e Gabriel, finalmente, abre caminho entre as pernas de Ana.

Os órgãos aquecidos pelo momento se encaixam perfeitamente e num instante se desligam do restante do corpo para deixar clara a soberania do ato. Movimentos ainda mais intensos se desenrolam, dançando ao som dos gemidos e palavras desconexas. E ainda, num ultimo suspiro, numa ultima golfada de prazer, os dois se contorcem, enquanto seus corpos exaustos se desintegram por sobre os lençóis desgrenhados. Um último gemido, uma ultima palavra, uma ultima respiração. Num instante são apenas um, Ana e Gabriel, na cama, no leito do prazer, naquela noite de inverno.

O dia amanhece como o deveria ser. Ana ainda está deitada na cama. Roupas espalhadas pelo quarto são a prova da noite bem aproveitada. No teto, o ventilador parado afronta a mulher de olhos vidrados no objeto. O corpo tenro e jovial procura ao lado um outro ao qual possa se abraçar. Não há nada além do espaço vazio e solitário.

Fecha os olhos, abraça um travesseiro entre as pernas e deixa-se vagar, incrédula e satisfeita, no mundo dos sonhos – devassos.

Alexandre C. Martins - 30 de agosto de 2008

Mistério Noturno


O homem acorda assustado. A roupa encharcada de suor deixa claro o mal estar. O relógio marca três da madrugada e o silêncio é absoluto. Senta-se na beirada da cama, olhar pesado, leva as mãos ao rosto e logo levanta. A janela está aberta, nem uma leve brisa entra no quarto, apenas a luz de um poste ilumina o recinto.

Do quarto para cozinha. Marcelo enche o copo com água, virando-o em seguida num só gole. Senta-se e deixa-se apoiar pela mesa de mármore. A pedra gelada não o agrada, mas a vontade de ir até o quarto novamente é fraca perto do sono momentâneo. Dorme.

Papéis sobre a mesa do escritório, computador ligado e em ação, gravata afrouxada, camisa com botões abertos. O ventilador de teto gira vagarosamente para não espalhar a papelada, mas o calor não consegue sanar. E ali está Marcelo, em pleno horário de almoço. A hora passa voando enquanto o cansaço toma conta do homem. O telefone toca como que para atrapalhar. A voz feminina quebra a aflição. Conversam muito e desligam. Hora de voltar aos afazeres.

Acorda. Trabalhar durante o sonho não lhe agrada nem um pouco, o suor escorre-lhe pelo corpo – “Calor infernal”. Acha melhor tomar um banho e se desfazer da agoniante sensação de realidade causada por um sonho ruim.

A água quente proporciona a Marcelo o primeiro alívio da noite. Não precisa de caprichos, apenas deixa a água escorrer por seu corpo. Por minutos ali permanece até se dar conta de que já é hora de sair. Sem roupas segue para o quarto, não quer se vestir, apenas jogar-se na cama e descansar, mas não dormir, chega de sonhos por hora. No entanto, dorme.

Cama. Marcelo deitado ao lado de uma bela mulher, ambos dormem, sem roupa qualquer e abraçados. Um celular toca, o casal se movimenta, mas não atendem, nem mesmo acordam. Insistente o aparelho volta a gritar – Ela atende.

Depois de poucas palavras ao telefone a mulher veste-se, agitada. Procura desesperadamente cada peça de roupa, as quais estão espalhadas pelo quarto. Marcelo acorda. Não dá ela explicações e voa quarto a fora. Marcelo ouve gritos no corredor e estrondo de um corpo ao chão. Sem cerimônias um homem entra no quarto e inicia uma briga se inicia.

Malditos sonhos - pensa o homem. Tudo totalmente sem sentido. Devaneios de uma mente cansada e perturbada. Não quer mais levantar, não quer ir a cozinha nem tomar banho, apenas dormir e não sonhar. Enfrentar a noite de olhos fechados e satisfeitos. Mente paralisada e subconsciente silenciado. Ouve barulhos no andar inferior.

Veste-se e corre para baixo – Nada. Ouve passos, mas não vê ninguém. Gargalhadas e falatório, movimentação invisível. Tenta abrir a porta da casa, mas não consegue, está emperrada. As janelas também em mesma situação, e as gargalhadas continuam.

Como que sugado por uma força irresistível, Marcelo se vê novamente brigando com o homem desconhecido. Socos e chutes ao som dos gritos da mulher desesperada. O estranho saca uma arma. Os olhares dos homens se encontram, o mundo cala-se para Marcelo enquanto o segundo parece se tornar horas. Em pouco tempo a luta termina. Sangue, ainda mais silêncio e o sono tentador, as batidas da morte à porta.

Algumas pessoas sobem as escadas com malas nas mãos, rindo e entretidas com a nova morada. Marcelo senta-se no sofá, não é visto e menos ainda sentido, porém uma dúvida o atormenta - ele é o Marcelo que aparentemente está acordado ou o Marcelo que supostamente está sonhando...

E quando o sonho deixa de ser sonho? E quando a vida já não é mais vida? Sobra apenas a morte. A descoberta desta é fria, dura e cruel e vem enevoada em sonhos, mas é real e se faz real, apenas demora a ser entendida

Alexandre C. Martins - 30 de agosto de 2008

45 minutos

Duas horas

Tudo se apaga, não vejo coisa alguma, apenas ouço minha respiração oral, enquanto o ar quente emanado desta me irrita profundamente. Um calor intenso se espalha por sobre meu corpo - como que em chamas. Até mesmo o odor de carne humana queimada chega à minhas narinas, causando-me náuseas. Meus pés imóveis, enlaçados por algo realmente forte, bem como minhas mãos, compõem a cena perfeita de um crime em potencial. Sentado em uma cadeira de plástico – bamba – imagino apenas o pior, e o pior nem chega perto de ser a morte.

Enclausurado numa armadilha de medo, pego-me a sugerir façanhas de fuga para minha mente conturbada, mesmo que meu corpo jamais obedeça a qualquer estímulo de liberdade - tão preso que está. E mesmo que nada escute, além dos sons de meu próprio cansaço, sei que em breve, por alguma barulhenta porta de ferro, um alguém desconhecido fará caminho e se encarregará de mostrar-me meu destino. A ilusão é minha única aliada e também a pior inimiga.

Solidão. Num breve momento, enquanto apenas imagino o que se seguirá, uma saudade de pessoas que jamais conhecerei, de lugares que jamais verei engloba meus pensamentos. O tempo segue em frente, sempre linear – tão somente lá fora, pois aqui o tempo não existe e a angústia reina soberana em seu trono de ouro. Sinto-me como o sem graça bobo da corte, que não mais sendo útil, logo na primeira oportunidade, perde a cabeça.

Duas e meia.

Passos, não apenas de uma pessoa, mas de várias. Um sapateado incomum em meio a tanto, anterior, silêncio. Uma música mortuária ou uma dança em torno de meu próprio túmulo, ou seria apenas o abismo ao qual sou arremessado? Daqui pra frente vejo tudo claramente. Talvez tenha sido pego por engano, mas quem me ouviria falar por debaixo desse trapo que me cobre a cabeça por completo? Antes mesmo de qualquer brincadeira mortal começar, sinto as dores de uma pancada imaginária, tão intensa que quase real. Aperto meus olhos com força, enquanto meu corpo treme, deixo-me inclinar para frente, o homem diante da guilhotina, o público grita por sangue – meu sangue!

Uma hora atrás estava apenas na rua, caminhando para casa, num dia de sol como outro qualquer. Não imaginei que pudesse ser o último de minha vida, não antes daquele carro parar diante de mim e dele dois homens saírem, agarrando-me rapidamente. Mal pude pensar em pedir ajuda, na verdade nem pensei. Deixei que minhas atividades ilícitas traçassem meu caminho, e todas elas o fazem, sem dó ou piedade.

Os passos continuam e uma voz ecoa no local fechado e úmido, propício para um fim cinematográfico. Tiram-me o capuz e quando penso em dizer algo, acabou. O rosto branco, escondido por uma barba espessa e sombria, é o autor do único disparo.

Duas e quarenta e cinco

Tudo está claro, vejo ao meu lado um corpo avermelhado, aberto e sem vida. Uma mulher me olha atentamente, e num minuto reconheço o rosto de minha adorada esposa. Tão doce, suave, agora tomada por uma rigidez inexplicável, a feição séria e inerte não me deixa dúvidas. Minhas roupas luxuosas agora são nada naquele chão imundo e minha vida jaz ali mesmo.

Um homem deixa de existir, uma mulher ganha seu prêmio merecido por tão meticulosa façanha. Um morto fala o que não poderia falar e uma música horrenda toca – a água brincando com a canoa da morte!



Para saber mais sobre o livro Delicatta III - paulbathory@hotmail.com

Alexandre C. Martins - 30 de agosto de 2008